UNO Março 2017

A pós-verdade: entre a falsidade e o engano

Que alcance discursivo cabe atribuir ao surgimento do termo “pós-verdade” nos debates da atualidade? Ensaiar uma resposta, por mais aproximada que seja, requer transitar pelo território das nuances. Quanto a isso, conviria iniciar salientando que, aqueles que celebram a suposta novidade teórica da pós-verdade, na realidade sustentam que, tendo a noção clássica da verdade se tornado obsoleta, segundo eles, esta levou consigo o que deveria ser considerada seu inevitável par: a mentira, que deixou de ser algo condenável per se, ao passar, também ela, a ser relativizada.

 

A pontuação resulta essencial não apenas para interpretar adequadamente os termos em discussão, mas também para entender, de maneira correta, o diferente eco que estes estão promovendo no debate, como tal, dependendo do contexto em que eles surgem. Porque, começando pelo último, não é por casualidade que onde o questionamento tenha causado mais alvoroço sobre a verdade, tenha sido nos ambientes culturais norte-americanos, no qual, em razão do enorme peso que tenha tido, secularmente, a tradição puritana (George Steiner deixou inúmeras páginas sobre o assunto em Paixão Intacta), a mentira é considerada algo, de qualquer ponto de vista, inaceitável, tanto no âmbito público quanto privado. Parece claro, no entanto, que em nossa cultura – católica, para simplificar – não haja uma tendência a considerar as coisas da mesma maneira. Assim, é um fato que o mesmo comportamento – digamos, um engano no âmbito mais íntimo –, que no mundo anglo-saxão que expulsa seu protagonista da vida pública, entre nós ele seja julgado com enorme benevolência e receba uma reprovação social francamente inferior.

A mentira é considerada algo, de qualquer ponto de vista, inaceitável, tanto no âmbito público quanto privado.

Agora sim, apontadas as diferenças contextuais, convém entrar em um detalhe do conteúdo dos termos em disputa. Provavelmente, os apologistas da pós-verdade tenham sido beneficiados, de maneira ilícita, por um elemento crítico que, adequadamente utilizado, não deveria gerar grandes problemas em nós. A crítica a determinados usos “rígidos” da verdade, sem dúvida, resultou saudável em muitos contextos. Assim, o que funciona no campo do conhecimento científico-positivo não pode ser transferido e, menos ainda, passado mecanicamente a quaisquer outras áreas. Afinal de contas, a Verdade – absoluta e com letra maiúscula – há muito tempo foi identificada pelo dogmatismo. Frente a isso, absolutamente ninguém coloca em discussão que – apenas para dar um exemplo –, no âmbito da cultura resulta tão inevitável quanto conveniente inserir a dose apropriada de relativismo.

 

Mas extrapolar esse necessário ponto de ceticismo antidogmático para convertê-lo em uma negação absoluta da possibilidade de nos colocarmos de acordo sobre o que é verdadeiro e o que não é, o que é informação e o que é mera opinião, o que é descrição fiel e o que é mera interpretação, constitui uma falácia inaceitável, de qualquer ponto de vista. Uma falácia que se baseia em uma confusão, a de pensar que, na esfera científica, a parceira da verdade é a mentira quando, na realidade, este lugar é ocupado pela falsidade. Os “erros” da esfera científica não são mentiras, mas inverdades e, deste modo, ninguém pode colocar em causa a sua qualidade como tal – ou será que alguém consideraria uma pós-verdade meritória o questionamento da lei dos corpos em queda? Por outro lado, as mentiras residem no âmbito humano e se opõem à sinceridade. Se tivéssemos que dizer isso de uma maneira firme, diríamos que “algo” é falso, enquanto “alguém” diz uma mentira. Formulando isto ainda mais sistematicamente: mentira é esse erro que depende do interlocutor – não se mente sem querer.

Uma falácia que se baseia em uma confusão, a de pensar que, na esfera científica, a parceira da verdade é a mentira quando, na realidade, este lugar é ocupado pela falsidade.

Não nos privemos de colocar exemplos: os dados utilizados antes do referendo dos partidários do Brexit para convencer aos cidadãos britânicos sobre a conveniência de deixar a UE eram, em si mesmos, falsos e, além disso, mentira, a partir do momento em que foram divulgados pelos primeiros, sabendo de sua falsidade. Referir-se aos mesmos, em termos de pós-verdade não deixa de ser mais uma forma de fazer rodeios, se me permitem usar uma expressão coloquial.

 

Mas, ao mesmo tempo, convém rejeitar um desenho que não deixe mais opções do que o de levantar a questão a partir da visão científica, ou talvez da moral – um tão inquestionável, o outro tão escorregadio. Diante de tal dilema, talvez resulte conveniente introduzir a hipótese de que o último valor a se defender não seja a verdade nem a sinceridade; o último valor deve ser a comunicação no espaço público, dentro da perspectiva de debater, democraticamente, aquilo que convém a todos. Neste horizonte, é preciso enquadrar quaisquer propostas teórico-políticas, incluindo a pós-verdade. Por isso, vale a pena tentar atinar para uma formulação mais ponderada possível, que evite nos fazer ser arrastados por conclusões, muitas vezes confusas, dicotomias como as que temos comentado até agora – para não mencionar o mais que recente conceito dos alternative facts, cunhado por Kellyanne Conway, conselheira-sênior do executivo da presidência de Donald Trump.

 

Quiçá o fato de colocar as coisas em termos de pós-verdade, longe de esclarecer qualquer coisa, cumpra com as ressonâncias provocadoras – metade do caminho entre a epistemologia e a moral –, na função de desviar nossa atenção sobre aquilo que mais importa, que não é outra coisa senão o imperativo com qual deveria ser regido o debate público. Deixe-me dizer assim para concluir: não deveria resultar admissível, sob nenhum conceito, e de nenhuma forma, na esfera pública, enganar aos cidadãos.

Manuel Cruz
Professor de Filosofia da Universidade de Barcelona / Espanha
É um dos mais renomados filósofos espanhóis contemporâneos. Professor de Filosofia na Universidade de Barcelona e porta-voz do PSOE na Comissão de Educação do Congresso dos Deputados. Também foi professor visitante de universidades europeias e americanas. Escreveu trinta ensaios filosóficos, obtendo os Prêmios Anagrama, em 2005 (Malas pasadas del pasado); o Espasa, em 2010 (Amo, luego existo); o Internacional de Ensayo Jovellanos, em 2012 (Adiós, historia, adiós); e o Unamuno, em 2016 La flecha hace blanco en la historia). Foi presidente do partido Federalistas de Esquerda na Catalunha, sendo um dos pensadores de referência dos jornais El País, El Confidencial e outros meios de comunicação. [Espanha].

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