UNO Maio 2016

O que significa ser digital para uma empresa?

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O conceito de empresa digital surgiu no fim da década de 90 do século 20, época em que a internet se afirmou como uma tecnologia relativamente generalizada na maior parte dos países desenvolvidos. Naquela época, as startups digitais proliferavam, e novas possibilidades como o comércio eletrônico e a economia digital questionavam o status quo dos modelos de negócio estabelecidos. O consultor em gestão Don Tapscott falava das oportunidades e dos perigos da economia digital. O sociólogo Manuel Castells propunha o conceito de empresa em rede como o modelo empresarial do capitalismo informacional caracterizado pela sociedade em sistema interligado, ainda a se delinear. Um artigo emblemático da consultora McKinsey apresentava a Cisco Systems e a eBay como exemplos de “orquestradores” de uma complexa rede de parcerias e outsourcings empresariais. Naquela época, ser digital significava, para uma empresa, estar conectado a partir de um suporte infraestrutural de Tecnologias da Informação e da Comunicação (TIC). O funcionamento em rede podia ocorrer no plano interno, melhorando e agilizando processos de trabalho, promovendo a partilha de conhecimento e a inovação, reforçando a produtividade. E podia também ocorrer no plano externo, criando redes de relações com fornecedores, parceiros, clientes e por vezes até competidores.

Passadas quase duas décadas, ser digital assume contornos diferentes. Como o especialista em social media marketing Erik Qualman afirma, já não estamos falando de uma questão shakesperiana, pois ser digital deixou de ser uma opção, tornou-se inevitável. A nova questão a pensar é até que ponto uma empresa pode estar adaptada ao contexto digital em que se insere e retirar o máximo potencial das ferramentas digitais que tem a seu dispor.

Esse reconhecimento de que ser digital é, atualmente, inevitável, decorre de um entendimento contextual do que significa ser digital, em detrimento de uma abordagem tecnológica. Podemos comunicar digitalmente, mesmo que não estejamos a usar tecnologias como canais de comunicação. Também vivemos e pensamos digitalmente, pois as tecnologias digitais estão completamente integradas nas nossas rotinas cotidianas, e vários estudos têm comprovado seus efeitos nas estruturas cognitivas humanas.

Pois ser digital deixou de ser uma opção, tornou-se inevitável

Marshall McLuhan, um dos especialistas em estudos das mídias mais polêmicos, relacionou a mudança social com a evolução tecnológica precisamente pelos efeitos cognitivos das mídias. A partir dos estímulos que dirigem a nossos sentidos, as tecnologias de comunicação moldam respostas neuronais e, consequentemente, percepções e concepções.

017_1A sociedade contemporânea é marcada pela utilização generalizada, frequente e intensa de tecnologias digitais. Essas tecnologias são conectadas, multimídia, integradas, e por vezes tão amigáveis e tão fluidas que se tornam imperceptíveis. Moldam no ser humano estruturas cognitivas assentes na multitarefa, no networking, numa abrangência holística que é conseguida por meio de uma certa superficialidade, estratégia que desenvolvemos para lidar com o excesso de informação e estímulos com que somos confrontados a todo o momento. Outro dos efeitos das tecnologias digitais é a aceleração do ritmo cotidiano. Fazemos cada vez mais coisas ao mesmo tempo, e ainda assim esse tempo é cada vez mais escasso.

Independentemente das tecnologias que possamos ou não utilizar, partilhamos todos o mesmo estilo de vida conectado e acelerado, presente em nós enquanto profissionais e consumidores. Não temos paciência para esperar, e quando a espera é inevitável rapidamente o smartphone é retirado de bolsas e bolsos para preencher esses segundos, que não podem ser “desperdiçados”. Já não combinamos encontros com hora marcada, vamos coordenando durante o dia, acertando agendas, trabalhando em movimento, num aproximeeting complexo e constante. As crianças nascem em lares digitais, e pegam antes num smartphone do que num lápis. E se “googlarmos” nosso nome, será difícil encontrar quem não tenha nenhuma presença digital, da mesma forma que uma empresa que não tem nenhuma presença online por iniciativa própria pode ver-se diante uma crise reputacional com origem numa rede social ou num agregador com reviews e ratings. As empresas são digitais porque nós somos digitais.

Mas ser digital não significa alternar entre a realidade física e um plano paralelo virtual. O online e o offline estão interligados, são interdependentes, são complementares. Uma análise negativa online pode contribuir para a diminuição do fluxo de clientes a um restaurante físico. Uma empresa sem nenhuma presença digital pode perder clientes porque nunca é encontrada a partir das pesquisas feitas no Google. Um profissional pode ser rejeitado para uma vaga por causa de informações que o recrutador possa ter encontrado em redes sociais. Da mesma forma, uma experiência excelente num hotel pode motivar uma opinião online que trará mais clientes. A pesquisa de produtos e preços online conduz ao efeito ROPO (Research Online, Purchase Offline), motivando assim visitas a lojas físicas. Um perfil excepcional no LinkedIn pode motivar uma empresa a fazer uma proposta a um profissional. Usando os termos do filósofo Martin Heidegger, ser digital é uma condição intrínseca de nossa forma de “ser no mundo” atual, faz parte do que significa ser (ou viver) na sociedade contemporânea.

Partilhamos todos o mesmo estilo de vida conectado e acelerado, presente em nós enquanto profissionais e consumidores

Da mesma forma que o Design Thinking aplica os princípios do design à criatividade e ao empreendedorismo, ou a Gamification aplica os princípios dos videojogos a programas de fidelização de clientes ou à comunicação interna, também a digitalização das empresas vai além da adoção e utilização de plataformas e ferramentas tecnológicas. Uma empresa digital não é (apenas) uma startup tecnológica, uma empresa que vende online, ou uma empresa que está presente no Facebook. Ser digital significa, para uma empresa, incorporar a lógica de funcionamento das tecnologias digitais, independentemente de utilizar ou não plataformas concretas, lógica essa que assenta na conectividade, na interatividade, na emoção e na intuição, na velocidade, e na criatividade. Uma empresa digital está em permanente contato com todos os stakeholders, adotando um modelo de comunicação dialógico e interativo. Uma empresa digital responde instantaneamente a todos os seus stakeholders, não faz ninguém esperar. Uma empresa digital personaliza ofertas e contatos, parte do Big Data para chegar a uma relação única e especial com cada um. Uma empresa digital está em nossos bolsos, na nuvem, em todo lado. Uma empresa digital sabe ser relevante e oportuna, conseguindo atrair a atenção num ambiente de abundância de estímulos. Em última instância, uma empresa digital compreende todos os seus stakeholders, também eles digitais, e consegue oferecer-lhes soluções que satisfaçam suas necessidades, indo ao encontro de suas preferências.

Num futuro próximo, o futuro da Internet das Coisas e dos dispositivos, o futuro do Big Data e da inteligência artificial, não seremos apenas nós e as empresas que são digitais. Os objetos estarão conectados, registarão nossos comportamentos e anteciparão nossas necessidades. Nossa realidade será digital.

Patrícia Dias
Professora auxiliar da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa e pesquisadora no Centro de Estudos em Comunicação e Cultura
É professora auxiliar da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa. É também pesquisadora no Centro de Estudos em Comunicação e Cultura, e coordena a pós-graduação em comunicação e mídia sociais. Doutorada em ciências da comunicação, seus interesses de investigação são as mídias digitais, comunicação, marketing e relações públicas. É membro das ações Cost eRead e DigiLitEY, do Consórcio em Tendências Emergentes em Estudos de Audiências (Cedar), e do projeto da Comissão Europeia Crianças (0 a 8 anos) e Tecnologias Digitais. É autora de Viver na Sociedade Digital (2014) e de O Telemóvel e o Quotidiano (2008).

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