UNO Novembro 2014

Veracruz-2014 e a estruturação cultural

02_2Em 2009, quando a crise econômica eclodiu com todo o seu potencial destrutivo, a Fundação Carolina publicou um livro especial, coordenado pelo ex-presidente do Governo espanhol, Felipe González, cuja memória e conteúdo é oportuno recuperar. Foi intitulado “América Latina 2020. Desafios diante da crise”. O elenco de ensaístas reunido pelo o ex-presidente González – autor de um sábio prólogo – é impressionante. Não só porque já então a nova Secretária-Geral Ibero-americana, Rebeca Grysnpan, assinou um texto em que demonstrava seus conhecimentos e capacidades (“A desigualdade e o desafio do desenvolvimento na América Latina e no Caribe”), mas porque, além de temas macroeconômicos, sociais e institucionais, a obra incorporava o tratamento dos grandes assuntos do conhecimento e da cultura como elementos da identidade diversa que estrutura as sociedades ibéricas – Espanha e Portugal – e da América Latina, escrito por personalidades da mais alta qualificação e prestígio.

O falecido escritor Carlos Fuentes – um dos mais ilustres escritores em língua espanhola dos últimos 50 anos – já assinalava a “educação como a base do desenvolvimento”, mas o ex-presidente do Chile, Ricardo Lagos, acerta plenamente em seu trabalho intitulado “Ibero-americana: identidade para um mundo global”. Embora a citação seja grande, vale a pena buscar uma reflexão do político chileno que deve marcar o futuro das relações internas e sólidas entre os países que se encontrarão nas cúpulas latino-americanas.

“Lagos escreve com razão que a América Latina se expressa com mais força através da cultura que de qualquer outra forma. A Ibero-América deve ser um projeto cultural e idiomático ou não será.

Ricardo Lagos escreveu em 2009 que “o que caracteriza o mundo latino-americano é o mesmo que caracteriza a Península Ibérica: essa capacidade de incluir e onde a diversidade é o elemento base para a identidade, tanto na América Latina quanto na Península Ibérica. Esta identidade, que se assenta em sua própria diversidade, permite então que possamos projetar-nos em um mundo que parece querer fragmentar-se a partir de diferentes identidades culturais (…)”. Esta identidade diversa a que referia-se Lagos “permite – dizia ele – nos aproximarmos de uma patrimônio comum, uma cultura compartilhada, baseada na tolerância e no respeito à identidade do outro” e sentenciava, “a América Latina se expressa com muito mais força na cultura do que em qualquer outra forma: política, econômica ou social “.

A exemplo do que acontece nas comunidades de países que falam inglês ou francês, Ricardo Lagos aponta para o centro do alvo: a conexão da comunidade ibero-americana é cultural ou não é. Nossa identidade é a cultura diversificada que dispomos que, no entanto, provêm de um mesmo tipo sanguíneo, o idioma – o espanhol e o português -, através do qual veiculamos desejos, sentimentos, emoções, afinidades e o que é substancial, a diversidade citada reiteradamente por Ricardo Lagos. De tal maneira que a comunidade ibero-americana encontra uma permanente e, além disso, crescente razão de ser no idioma, mais do que em fatores que, pela sua natureza, são mutáveis – dos ideológicos aos institucionais. Tão crescente que é o intangível o mais exportado nas últimas três décadas aos Estados Unidos da América, onde a comunidade hispânica, em alta, já adquire um protagonismo irreversível. Hoje o espanhol é falado nas sociedades mais dinâmicas e com mais capacidade de desenvolvimento material e intelectual.

A exportação mais decisiva da Ibero-América aos Estados Unidos tem sido, através das migrações, as comunidades hispânicas. O turismo cultural é um ativo de grande valor agregado.

02A construção – amigável e aberta, mas sólida e permanente – da Ibero-América dependerá do que os grandes encontros entre mandatários de seus países (Veracruz 2014) concordem em impulsionar quanto ao feito latino-americano, por meio de desenvolvimentos contemporâneos, mediante instrumentos inteligíveis e atraentes para as novas gerações. E isso só pode ser alcançado através da promoção das indústrias culturais que vão ganhando peso nas economias locais e na mundial Ibero-americana. Porque a cultura e o idioma são, além de intangíveis, fontes de riqueza. O cinema, a edição de livros, a música, as produções de televisão e rádio, o teatro… todas as manifestações culturais devem ser entendidas de uma forma dual: nos unem, nos identificam, mas também contribuem para o bem-estar material, porque implicam em investimento, postos de trabalho, pesquisa e criatividade. E, nesta área, não devemos esquecer que a sociedade do conhecimento impõe o fácil deslocamento de cidadãos ávidos por conhecimento, gerando assim a indústria do turismo como um fator de aproximação social, mas também de criação de riqueza. Poucas iniciativas são materialmente mais passíveis de retribuição e gratificantes ao intelecto que o turismo cultural quanto a Ibero-América pode proporcionar em valor agregado.

No entanto, há políticas conjuntas para as indústrias culturais? Lamentavelmente, não há. Enquanto as ameaças à sustentabilidade do patrimônio cultural crescem (o fenômeno da pirataria digital está tornando deserta a música e o cinema, e o livro também começa a ressentir-se) – ao contrário, parecem debilitar-se –, não se fortalecem os fatores de proteção nem emergem as políticas proativas. Os países mais desenvolvidos criaram fortes garantias aos direitos de segurança, direitos autorais e criadores na web. Estabeleceram critérios de compensação equitativa por cópia privada (que é o que oferece valor adicional à tecnologia de reprodução e armazenamento de conteúdo) e permaneceram fieis, inclusive na crise, ao co-financiamento das expressões culturais mais caras, mas também mais importantes.

Não há políticas conjuntas de proteção proativas a favor das indústrias culturais. Apostemos nelas.

A Espanha seria um exemplo do colapso das indústrias culturais: não há defesa eficiente dos direitos da propriedade intelectual diante da impunidade da pirataria; foi suprimida a regra digital, substituída por um insuficiente limite orçamentário para compensar a cópia privada; o IVA aumentou para 21% – o mais alto de toda a Europa -, foram reduzidos os subsídios, não há linhas de financiamento de crédito e a Lei do Mecenato, além de não ser aprovada, é um projeto que está longe de competir com outros estados do entorno espanhol.

É dessas materialidades e intangibilidades que deveriam ser faladas, debatidas e acordadas nas Cúpulas Ibero-americanas – ainda que não unicamente – para fortalecer o vínculo comum de caráter cultural e idiomático que dá sentido à coesão hispano-lusa. O caráter veicular, quase universal, que adquiriu o inglês e o que isso deriva (poderosas indústrias de cinema, televisão, música…), não deveria conduzir à desistência, mas ao esforço, especialmente se considerarmos que as fortes migrações de países latino-americanos a outros que falam o inglês, além da Alemanha e, em menor medida, a França, criaram grupos sociais com identidade de origem, que gostariam de manter seu idioma, hábitos e costumes, e, consequentemente, suas idiossincrasias. Em relação à política, a divergência terminará normal e estabelecerá distâncias e diferenças. O que compõe a Ibero-América – como Ricardo Lagos escrevia – é a cultura diversificada em um idioma comum. Apostemos nela.

 

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